Anne with an E: A educação do imaginário

Allenylson Ferreira
6 min readJun 13, 2018

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A série original da Netflix, adaptação do romance de Lucy Maud Montgomery (Anne of Green Gables), é um primor. A história da órfã Anne (com E) Shirley é cativante e passa várias lições sobre a vida. Sim, podemos dizer que a produção que contém sete episódios é infantil (classificação 12 anos). Mas os temas tratados ao longo da temporada são demasiado humanos e agrada o público de todas as idades. Anne with an E, na minha concepção, é um conto de fadas. Serve para educar o imaginário dos pequenos e dos grandes, pois a própria protagonista convence de que a boa imaginação é uma forte arma aliada para viver uma vida mais feliz e mágica. A realidade é algo difícil de ser encarada, principalmente para as crianças, mas com a ajuda da imaginação podemos enfrentar os problemas do dia a dia com mais resiliência e um toque de heroísmo. Não somos pessoas comuns, e nem este mundo é comum. G. K. Chesterton, em Ortodoxia, afirma que o mundo está repleto de magia. Boa magia. Basta apenas educar a imaginação para perceber que os acontecimentos ordinários, vistos sob a ótica (e ética) do país das fadas, na verdade são extraordinários.

Anne sabe disso. E usa sua imaginação e as palavras belas e difíceis para expressar que o mundo não é preto no branco. Sua curta trajetória pela vida poderia convencê-la do contrário. Órfã, vivendo jogada de uma família para outra, sendo explorada e maltratada, exposta a situações que nenhuma criança poderia ser exposta, ela poderia ter um olhar pessimista e cinza sobre a vida. Mas ao invés disso, ela tem a imaginação como aliada sempre pronta para tirá-la do fato duro que é a sua vida e ser transportada para reinos encantados, onde tem a possibilidade de ser feliz e amada.

Mas Anne nunca perde a esperança. E ela sabe que a nova família irá gostar dela e todo o seu pesadelo irá ter um fim. Ela chega à fazenda Green Gables por engano, pois Marilla Cuthbert queria um garoto para poder ajudar o seu irmão, Matthew Cuthbert, nas tarefas diárias da fazenda, pois ela já estava ficando velho e cansado. Esse contratempo causa embaraço em Matt quando vai buscar a criança na estação de trem, pois sabia que a irmã havia estava esperando um garoto. Mas ele se encanta com Anne e será o apaziguador de toda a situação, pois Marilla é muito dura. Anne, magra, ruiva, com sardas, é aquela criança “estranha” das demais. Mas o que encanta é o seu caráter, sua imaginação fértil, seu olhar de espanto diante da vida e cada coisa criada. Os dois logo estabelecem uma ligação afetuosa e nada mais poderá separar Anne dos Cuthbert, porém haverá situações desesperadoras tanto para Anne, quanto para Matt, até mesmo para Marilla — e, claro, para nós que estamos assistindo. Não irei contar exatamente todos os acontecimentos da série, pois o objetivo deste artigo é tratar sobre como Anne with an E pode educar o nosso imaginário.

Nos contos de fadas não aprendemos que dragões existem, mas que podemos derrota-los — pois é claro que dragões existem! Anne ensina que podemos lidar com o sofrimento do mundo tendo outro olhar, mais esperançoso e criativo. De que as coisas podem ser mudadas, contanto que nos esforcemos. Uma garota estranha pode ser objeto da crueldade das crianças a ponto de fazer com que ela desista do seu maior sonho. Mas também sabemos que a estranheza não é tão ruim assim, porque há algo belo e encantador quando olhamos atenciosamente e com os olhos bem abertos para aquele que achamos ser estranho. Pois quem não é? A aparência física não determina o nosso caráter. Anne pode não ser a garota mais linda da escola, mas pode ser a mais adorável, criativa, inteligente e sonhadora que todas elas.

O clube de mães progressistas, em determinado episódio, chama Marilla para fazer parte das reuniões. No círculo feminino, elas discutem sobre as oportunidades das mulheres e como educar suas garotas para ser o que quiserem ser. Mas quando um incidente acontece, pois Anne não sabe a hora de calar a boca, e em sua inocência conta sobre como sua antiga tutora brincava com o ‘rato’ do marido, e fala que uma das garotas da sala iria brincar com o ‘rato’ do professor, as mães progressistas ignoram Marilla e diz que ali não há mais lugar para ela. Ao saber de toda a história, Marilla vai pedir desculpas à mãe da garota e é tratada com frieza e indiferença. Ao que a Cuthbert repreende a mulher falando da hipocrisia do “clube de mães progressistas” e deseja que nesse progresso que elas tanto defendem possa haver algum lugar para a compaixão.

Anne é muitas vezes injustiçada, mas depois ela demonstra que as pessoas estavam erradas e conquista aqueles que a olhavam com preconceito. Embora possamos ser injustiçados, não é necessário fazermos disso o fim de todas as coisas e nem ficar se lamentando. Quando dizem que Anne é incapaz, ela se esforça e mostra que é capaz sim. Que tem bravura, perdoa (e sabe que exercer o perdão é algo muito difícil), luta por aquilo que ela ama e não permite que ninguém faça desisti-la de tentar. Tudo isso porque sua imaginação foi bem educada pelos romances que lera, e que deles extraiu a essência de todos os romances bons e que têm algo a nos ensinar. Anne Shirley Cuthbert não é uma menina tola, e não adiante vir com conversas do tipo “seja boa, doce menina e deixe a inteligência para quem possui” como escreveu C. S. Lewis.

Ela sabia que deveria ser boa e doce, mas isso não a isentava de ser inteligente o tanto quanto pudesse. A ideia de ficar em casa, fazer as tarefas do lar, ter um marido não a agradava. Talvez ela pudesse ter um marido, mas ela não iria sacrificar a sua inteligência em prol disso. Não é que o casamento seja ruim, mas a ideia de sufocar a sua imaginação e seu aprendizado somente com as tarefas domésticas. A época em que o romance foi escrito é anterior à Primeira Guerra Mundial, então era comum ter essa visão sobre o papel das mulheres. Não cabe a mim fazer anacronismo e criticar a sociedade da época.

Anne with an E é uma série que aborda as virtudes, os vícios, os erros, o bem e o mal dentro do ser humano. Não retrata o mundo como se ele fosse unicamente mágico ou racional. Há um equilíbrio entre a imaginação e a realidade; e Anne aprende que não deve viver apenas sonhando com reinos encantados e rainhas. Que a vida deve ser enfrentada tal como ela é, mas que pode usar da imaginação para ajudar a mudar as coisas e fazer daqui um lugar mais suportável de se viver. Superando todos os obstáculos com determinação e criatividade, Anne ensina aos tempos modernos que a vida é mais do que aquilo que podemos ver. É preciso se espantar novamente.

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